Natalia Albuquerque e
Patrícia Ferreira Monticelli (Orgs)
[Logos: Emoções, Antrozoo, IP, ODS, USP]
2025
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Esta obra foi produzida no âmbito do Edital 2024 de Apoio à Publicação de Livros Digitais da USP da Agência de Bibliotecas e Coleções Digitais ABCD.
Este livro, onde a Ciência e os afetos se encontram, aproxima os sujeitos humanos dos não-humanos e demonstra a profunda relação, por vezes não tão explícita, plena de emoções inesquecíveis. Uma homenagem à Etta, nossa cadelinha sem raça definida que partiu para um plano muito especial. Gratidão.
Professora Doutora Targelia Ferreira Bezerra de Souza Albuquerque
(Cátedra Paulo Freire da UFPE e Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisas)
Há livros que nos convocam pelo que trazem de original. Este é um deles. Mas também, nos convocam pelo que desvelam: que, diante de outras formas de vida, nós, humanos, ainda temos muito a aprender — e talvez mais ainda a desaprender. A coletânea Interações entre as Pessoas e os Outros Animais: Um Olhar da Psicoetologia, organizada pelas professoras Patrícia Ferreira Monticelli e Natalia de Souza Albuquerque, não apenas reúne pesquisas rigorosas; ela nos convida a repensar os modos como percebemos, nos relacionamos e atribuímos sentido às experiências compartilhadas com outros animais.
O campo da Psicoetologia, em diálogo com a Antrozoologia, é um dos poucos que hoje se abre à escuta de subjetividades não humanas, sem reduzi-las ao comportamento observável nem antropomorfizá-las. É nesse ponto que proponho, como professora e pesquisadora, um cruzamento com a fenomenologia: a tentativa de compreender a existência de um ser a partir de sua vivência própria.
A fenomenologia oferece à etologia uma chave conceitual potente: o corpo do animal não humano como centro de sentido e agência, e o ambiente — ou, como Jakob von Uexküll formulou em Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen (1934) — como um mundo próprio, construído a partir da percepção e da motricidade específicas de cada espécie. Em 1940, Uexküll acrescentou ao livro uma teoria do significado (Bedeutungslehre), reforçando sua concepção do Umwelt como um campo de significações ativas. Em vez de um cenário neutro, o Umwelt é um campo de significações vividas: o carrapato não percebe o mesmo mundo que o cão; o peixe, o pássaro ou o ser humano não habitam o mesmo espaço, ainda que compartilhem a mesma realidade física. O mundo é, portanto, articulado pela corporalidade sensível do ser que o habita. Nesse sentido, a etologia fenomenológica se torna uma forma de escuta ontológica: interrogar o modo como cada animal constitui o seu mundo. Não se trata de projetar humanidade nos animais, mas de reconhecer que cada ser, ao se mover, ao perceber, ao agir, traça um horizonte — e nesse horizonte, manifesta intenções, interesses e, possivelmente, formas de cuidado e afeto. É com base nessa perspectiva fenomenológico-etológica que leio esta coletânea: como um gesto de escuta e reconhecimento da alteridade animal.
A coletânea que ora prefácio é composta por 13 capítulos, cada um deles pulsando a partir da mesma tensão essencial: como reconhecer os outros animais não como objetos de uso ou fantasia, mas como sujeitos de existência plena.
O livro inicia-se com três capítulos que fundam o eixo conceitual da obra: a vida emocional dos animais não humanos (Capítulo 1), a luta pelo reconhecimento jurídico dos seus direitos (Capítulo 2), e a necessidade ética global de assegurar seu bem-estar (Capítulo 3).
Trata-se aqui de um deslocamento fundamental: deixar de pensar nos animais como meros entes biológicos e começar a reconhecê-los como sujeitos de direito, dor, desejo e expressão.
Segue-se uma incursão nas relações sensíveis e comunicacionais com cães (Capítulos 4 e 5), abordando tanto a percepção humana das emoções caninas quanto a complexidade da interação com cães surdos — aqueles que, mesmo privados de um dos canais usuais da comunicação, revelam novos modos de vida possível junto aos humanos.
O livro então mergulha nos vínculos entre humanos e gatos (Capítulos 6 e 7), explorando a construção de apegos emocionais e a inovação metodológica da pesquisa científica ética realizada em ambientes domésticos.
Nestes capítulos, desenha-se uma delicada cartografia da alteridade felina, onde o outro não é mais projetado, mas escutado em seu próprio habitat.
Nos capítulos 8, 9 e 10, deslocamo-nos para o campo da vulnerabilidade: cães e gatos em situações de rua, em abrigos e em desastres naturais são tratados não como problemas, mas como sujeitos de cuidado e dignidade.
A Medicina Veterinária do Coletivo, os abrigos, e o trabalho de resgate emergencial traçam uma nova ética da intervenção e da reconstrução de vidas não humanas.
No capítulo 11, a coletânea traz uma reflexão sobre as relações humano-animal em tempos de pandemia, ampliando o olhar para os efeitos psicossociais e a reconfiguração dos vínculos em tempos de crise sanitária e existencial.
Finalmente, os capítulos 12 e 13 deslocam o horizonte para os animais selvagens e para o drama do Antropoceno: parques nacionais, turismo ecológico, e a urgência de inventar novas formas de coexistência marcam a entrada no tempo geológico em que a presença humana reconfigura o destino do planeta e de todas as espécies que nele habitam.
Cada capítulo, portanto, é menos um estudo isolado e mais uma estação de travessia: um convite a atravessar a fronteira da indiferença para, quem sabe, construir outros modos de habitar a Terra com os outros animais.
Os capítulos contribuem de maneira significativa para a construção de um entendimento mais profundo sobre as dinâmicas das interações entre seres humanos e animais. Juntos, eles oferecem uma visão interligada e rica de como as questões de comportamento, cognição, saúde e bem-estar animal são essenciais para a melhoria da convivência entre humanos e outros seres vivos.
Assim, esta obra cumpre um papel duplo: oferece ferramentas teóricas e práticas para pesquisadores, cuidadores e profissionais da área, e propõe um deslocamento ético — da dominação à escuta, da indiferença à responsabilidade. Trata-se de uma virada não apenas teórica, mas existencial.
É com grande entusiasmo que escrevo este prefácio para uma obra, que com certeza se tornará um marco no estudo da Antrozoologia e Psicoetologia. A coletânea proporciona uma reflexão necessária e urgente sobre a forma como nos relacionamos com os animais, ajudando a moldar um futuro em que a empatia, o respeito e o cuidado sejam princípios fundamentais.
Rio de Janeiro, abril de 2025
Ana Paula Barbosa-Fohrmann
Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito
e do Programa de Pós-graduação em Direito
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Natalia de Souza Albuquerque
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Uma única rede pode capturar de uma só vez um cardume inteiro com milhares de peixes. De longe, vemos aquela massa enorme sendo retirada do mar e jogada no convés do barco. Temos a dimensão de que é muito. Mas, será que realmente temos a dimensão do que está acontecendo? Ao chegar mais perto, conseguimos ver que não se trata de uma grande e única massa, mas de um amontoado de corpos particulares, cada um com uma boca, dois olhos e barbatanas. Ao chegarmos mais perto ainda, passamos a ver as guelras de cada um desses corpos abrindo e fechando: é a luta para conseguir respirar, parar de sofrer e continuar vivendo. Daí, sim, percebemos o que aquela única rede, em um único movimento fez: usurpou a vida de milhares de indivíduos. Veja bem, cada peixe é um indivíduo, um sujeito com vida subjetiva, um ser com emoções e inteligência, um agente transformador do seu mundo social e físico. Cada peixe é um universo inteiro, tem uma perspectiva única de vida. Só de perto, perturbadoramente perto, é que conseguimos ter uma real percepção. Mas, ainda assim, será que conseguimos enxergar que ali estão milhares de sujeitos e não de objetos?
Por que nos referimos ao bife no prato como “o que” vamos comer e não como "quem” vamos comer? Por muito tempo, animais não-humanos têm sido considerados objetos vazios e sem mente, sem sentimento e inteligência. Ao mesmo tempo, eles têm sido vistos como corpos fortes, resistentes, fáceis de manejar e lucrativos. Como resultado, todos os anos, espécies são ameaçadas de extinção, bilhões de porcos e galinhas são mantidos em gaiolas, milhões de ratos e camundongos são torturados em testes de produtos e cosméticos, ecossistemas inteiros são devastados. No entanto, o problema é ainda maior do que exterminar espécies, matar rebanhos inteiros e destruir ecossistemas. O problema vai até abusar, explorar, infligir sofrimento e dor direta ou indiretamente a trilhões de indivíduos todos os anos ao redor do planeta. Indivíduos estes que são atores de suas próprias vidas, que são entidades singulares, cada um com seus próprios desejos, vontades e necessidades.
Nós precisamos considerar o “sujeito animal”: animais não-humanos, assim como os humanos, são conscientes do seu próprio ambiente, possuem diferentes personalidades, são seres sencientes (sentem prazer e desprazer e possuem emoções) e possuem um senso de individualidade. Animais não-humanos, assim como os humanos, possuem vidas subjetivas e emocionalmente complexas.
O filósofo estadunidense Tom Regan (1983) argumenta que todos os animais são seres de valor intrínseco e inerente, ou seja, têm valor em si próprios, são fins em si mesmos, existem para si próprios e seu valor não se explica pelo que valem para o outro. Regan chama os animais de sujeitos-de-sua-vida, que têm passado, presente e futuro. De acordo com a filósofa brasileira Sônia Felipe (2006), um indivíduo ontológico tem valor intrínseco, com relação ao valor que acumula de cada uma de suas experiências, e valor inerente, que concretiza sua vida como algo insubstituível. Isso quer dizer que animais não-humanos não são objetos. Na verdade, de acordo com Gary Francione (2021), nenhum animal é propriedade e todos os animais importam moralmente. De fato, Laerte Levai (1998) pontua que animais não-humanos são detentores de direitos legais.
Figura 1. A moralidade, a compaixão e o conhecimento agindo juntos na geração de mudança. Ilustração por Carolina Troiano.
E sobre o que a Ciência não prova ainda? Bem, mesmo que as emoções dos outros animais não sejam idênticas às nossas, ou que variem de espécie para espécie, isso não significa que os animais não-humanos não sintam. Outro ponto a se considerar é que não há nenhuma prova de que os animais com cérebro relativamente menor não tenham uma vida emocional rica. Na verdade, em 2012, um grupo de cientistas renomados (as), encabeçado por por Philip Low e Jaak Panksepp, escreveu a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal (Low et al., 2012), indicando que já há evidências de que inúmeras espécies animais possuem os substratos necessários para a existência de consciência. Como diria o Professor Emérito da Universidade do Colorado Marc Bekoff, as perguntas estão migrando de “será que os animais não-humanos sentem emoções?” para “como os animais não-humanos sentem emoções?”.
Em seu livro A vida emocional dos animais (2010, p. 20), Marc Bekoff discute:
Neste mesmo livro, Marc Bekoff (2010, p. 21) argumenta que já sabemos muito sobre os animais e isso deveria ser suficiente para mudarmos a forma como lidamos com eles. Ele continua:
Considerar as emoções animais é um ato revolucionário e significa a responsabilidade de fazer escolhas éticas sempre. Como disse Ailton Krenak, uma das maiores lideranças indígenas do Brasil, em abril de 2023, no II Congresso Internacional de Direitos Animais, “Eu, primeiramente, sou um animal". Somos todos animais e compreender quem são os outros animais, como eles percebem o mundo, como eles sentem as mudanças ou as constâncias da sua vida e como se relacionam com os seres humanos nos dá as ferramentas para avançarmos como sociedade rumo a um mundo mais digno e justo para todos(as) que vivem nele.
Reconhecer que todos os animais possuem emoções é reconhecer que eles não são somente os indivíduos que nos apoiam quando enfrentamos algum problema, ou as figuras que nos entretêm em zoológicos e aquários, ou os seres que foram reproduzidos para servirem de comida ou modelos científicos. Independentemente de quando eles nasceram, como eles foram gerados, o valor econômico que eles têm ou se eles estão à beira da extinção, todos os animais merecem viver uma vida livre, feliz e gratificante. Todos os animais. Cada um deles.
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